A ministra Eliana Calmon (foto) prova
que é “uma rebelde que fala”, como se define. Na polêmica entrevista
concedida à Revista Veja, ela escancarou uma verdade que já se
desconfiava há muito tempo, mas o corporativismo inexpugnável da Justiça
brasileira impedia de vir à tona.
A nova corregedora do Conselho Nacional
de Justiça (CNJ) diz que é comum a troca de favores entre magistrados e
políticos. Ela afirmou também que o Judiciário está contaminado pela
politicagem miúda, o que faz com que juízes produzam decisões sob medida
para atender aos interesses dos políticos, que, por sua vez, são os
patrocinadores das indicações dos ministros.
Vale a pena conferir a entrevista:
Veja – Por que nos últimos anos pipocaram tantas denúncias de corrupção no Judiciário?
Eliana Calmon – Durante anos, ninguém
tomou conta dos juízes, pouco se fiscalizou. A corrupção começa embaixo.
Não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira
instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe
pede uma liminar, um habeas corpus ou uma sentença. Os juízes que se
sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções. Os que se
negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão.
Veja – A senhora quer dizer que a ascensão funcional na magistratura depende dessa troca de favores?
E.C – O ideal seria que as promoções
acontecessem por mérito. Hoje é a política que define o preenchimento de
vagas nos tribunais superiores, por exemplo. Os piores magistrados
terminam sendo os mais louvados. O ignorante, o despreparado, não cria
problema com ninguém porque sabe que num embate ele levará a pior. Esse
chegará ao topo do Judiciário.
Veja – Esse problema atinge também os tribunais superiores, onde as nomeações são feitas pelo presidente da República?
E.C – Estamos falando de outra questão
muito séria. É como o braço político se infiltra no Poder Judiciário.
Recentemente, para atender a um pedido político, o STJ chegou à
conclusão de que denúncia anônima não pode ser considerada pelo
tribunal.
Veja – A tese que a senhora
critica foi usada pelo ministro César Asfor Rocha para trancar a
Operação Castelo de Areia, que investigou pagamentos da empreiteira
Camargo Corrêa a vários políticos.
E.C – É uma tese equivocada, que serve
muito bem a interesses políticos. O STJ chegou à conclusão de que
denúncia anônima não pode ser considerada pelo tribunal. De fato, uma
simples carta apócrifa não deve ser considerada. Mas, se a Polícia
Federal recebe a denúncia, investiga e vê que é verdadeira, e a
investigação chega ao tribunal com todas as provas, você vai
desconsiderar? Tem cabimento isso? Não tem. A denúncia anônima só vale
quando o denunciado é um traficante? Há uma mistura e uma intimidade
indecente com o poder.
Veja – Existe essa relação de subserviência da Justiça ao mundo da política?
E.C – Para ascender na carreira, o juiz
precisa dos políticos. Nos tribunais superiores, o critério é única e
exclusivamente político.
Veja - Mas a senhora, como todos os demais ministros, chegou ao STJ por meio desse mecanismo.
E.C – Certa vez me perguntaram se eu
tinha padrinhos políticos. Eu disse: “Claro, se não tivesse, não estaria
aqui”. Eu sou fruto de um sistema. Para entrar num tribunal como o STJ,
seu nome tem de primeiro passar pelo crivo dos ministros, depois do
presidente da República e ainda do Senado. O ministro escolhido sai
devendo a todo mundo.
Veja - No caso da senhora, alguém já tentou cobrar a fatura depois?
E.C – Nunca. Eles têm medo desse meu
jeito. Eu não sou a única rebelde nesse sistema, mas sou uma rebelde que
fala. Há colegas que, quando chegam para montar o gabinete, não têm o
direito de escolher um assessor sequer, porque já está tudo preenchido
por indicação política.
Veja – Há um assunto tabu na
Justiça que é a atuação de advogados que também são filhos ou parentes
de ministros. Como a senhora observa essa prática?
E.C – Infelizmente, é uma realidade, que
inclusive já denunciei no STJ. Mas a gente sabe que continua e não tem
regra para coibir. É um problema muito sério. Eles vendem a imagem dos
ministros. Dizem que têm trânsito na corte e exibem isso a seus
clientes.
Veja – E como resolver esse problema?
E.C – Não há lei que resolva isso. É
falta de caráter. Esses filhos de ministros tinham de ter estofo moral
para saber disso. Normalmente, eles nem sequer fazem uma sustentação
oral no tribunal. De modo geral, eles não botam procuração nos autos,
não escrevem. Na hora do julgamento, aparecem para entregar memoriais
que eles nem sequer escreveram. Quase sempre é só lobby.
Veja – Como corregedora, o que a senhora pretende fazer?
E.C -Nós, magistrados, temos tendência a
ficar prepotentes e vaidosos. Isso faz com que o juiz se ache um
super-homem decidindo a vida alheia. Nossa roupa tem renda, botão,
cinturão, fivela, uma mangona, uma camisa por dentro com gola de ponta
virada. Não pode. Essas togas, essas vestes talares, essa prática de
entrar em fila indiana, tudo isso faz com que a gente fique cada vez
mais inflado. Precisamos ter cuidado para ter práticas de humildade
dentro do Judiciário. É preciso acabar com essa doença que é a
“juizite”. (foto/Veja)
É de gente assim que o Brasil precisa. Pena que pessoas assim acabam sendo isoladas.
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